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domingo, 26 de fevereiro de 2012

Portugal, a China, a Ciência e a Relojoaria - debate no Museu do Oriente


Padres mandarins na corte de Beijing, séculos XVI a XVIII

De 22 de Março a 24 de Maio, o Museu do Oriente recebe o Ciclo Diálogos e Expectativas, constituído por cinco diálogos entre dez especialistas em áreas diversas. Organizado pela Fundação Oriente e a Universidade Autónoma de Lisboa, o ciclo é de entrada livre, sujeita a inscrição. O primeiro diálogo está marcado para 22 de Março. “A ciência na China: perspectiva histórica” é o tema a ser abordado por Henrique Leitão e João de Deus Ramos.

Estação Cronográfica aproveita para recordar que Portugal, através do seu Padroado do Oriente, uma espécie de monopólio atribuído por Roma, e muito por acção da Companhia de Jesus, foi plataforma de exportação de saber científico para a Índia, China, Coreia, Vietname, Japão... Astronomia, Cartografia, Matemática, Lógica foram disciplinas que, muitas vezes através de aprendizagens preliminares na Universidade de Coimbra ou nos Colégios jesuítas, foram depois aplicadas no Oriente. A Relojoaria foi uma dessas facetas.

Trazemos aqui à colação extractos de um capítulo da História do Tempo em Portugal - Elementos para uma História do Tempo, da Relojoaria e das Mentalidades em Portugal (Diamantouro 2003) e de um artigo que escrevemos para uma exposição sobre o padre Tomás Pereira, que decorreu em 2010 no Centro Científico e Cultural de Macau, entre outra bibliografia horológica.

Imperador Kangxi

A técnica nasceu no Ocidente,
Mas, aprendendo, podemos conseguir o artifício:
As rodas movem-se e o tempo escoa-se,
Os ponteiros mostram os minutos à medida que eles passam.


Guarda-nocturno de barrete vermelho, não precisas de anunciar a autora.
O meu relógio de ouro já me avisou que horas são.


À primeira luz do dia, estou a trabalhar arduamente,
E continuo a interrogar-me, ‘Porque é que os pareceres ainda não chegaram?”

Kangxi, imperador chinês

Capítulo IV

De como os ocidentais entraram na corte do imperador da China através dos relógios e dos autómatos. E de como dirigiram o Observatório Imperial, em Beijing. E o caso do jesuíta português que iniciou a primeira escola de relojoaria no Japão.

A conquista de Ceuta, no Norte de África, em 1415, é considerada como o acto fundador da expansão portuguesa. Exactamente 73 anos depois, em 1488, Bartolomeu Dias realizava a grande viagem do século XV, o corolário da exploração da costa ocidental de África, que entretanto foi sendo paulatinamente feita. Estava aberta a porta marítima para o Oriente; as águas do Atlântico e do Índico, ao contrário do que os livros e as lendas diziam, comunicavam entre si.

Quando Diogo Lopes de Sequeira partiu à descoberta de Malaca, em 1508, a China passara a fazer parte dos interesses da coroa portuguesa. Nas Instruções que recebera do rei, D. Manuel I, Sequeira podia ler: “Perguntareis pelos chins, e de que partes vêm, e de quão longe, e de quanto em quanto vêm a Malaca, ou aos lugares em que tratam, e as mercadorias que trazem, e quantas naus deles vêm cada ano, e pelas feições de suas naus, e se tornam no ano em que vêm, e se têm feitores ou casas em Malaca, ou em outra alguma terra, e se são mercadores ricos, e se são homens fracos, se guerreiros, e se têm armas ou artilharia, e que vestidos trazem, e se são grandes homens de corpos, e toda a outra informação deles, e se são cristãos, se gentios, ou se é grande terra a sua, e se têm mais de um rei entre eles, e se vivem entre eles mouros ou outra alguma gente que não viva na sua lei ou crença, e se não são cristãos, em que crêem, ou a que adoram, e que costumes guardam, e para que parte se estende a sua terra, e com quem confinam.”

À sua chegada a Malaca, a 1 de Julho de 1509, Sequeira encontrou dois ou três juncos chineses no porto. Contactou directamente mercadores do Império do Meio, comeu a bordo de um junco, descreveu os chineses e os seus hábitos. Foi, de facto, o primeiro encontro luso-chinês de que há registo.

Em Julho de 1511, a frota de Afonso de Albuquerque aparece ao largo de Malaca, então talvez o porto mercantil mais importante do Índico Oriental. Ele já tinha resolvido a questão do mar Vermelho, com a conquista de Ormuz, já tinha conquistado Goa, tornando esta última a sede do império no Oriente; iria resolver a questão que faltava, conquistando igualmente pela força aquela praça, cujo rei prestava anualmente tributo ao imperador chinês.

Em 1513, o novo capitão de Malaca, Jorge de Albuquerque, envia um oficial da coroa, Jorge Álvares, com o objectivo claro, pela primeira vez, de navegar até à China.

Em 1557, existia já em Macau uma pequena colónia de portugueses, além de mercadores de outros países. O estatuto desta comunidade de comerciantes expatriados esteve desde o início envolvido numa nebulosa teia de interesses. A par da actividade comercial, o proselitismo religioso, levado a cabo pela Companhia de Jesus, que queria entrar no vasto continente, esteve desde os primeiros tempos ligado ao destino de Macau.
Na obra Do Oriente Conquistado, do padre Francisco de Sousa, relata-se que, em 1582, ocorreu um incidente “do qual com maior fundamento se podia esperar serem os portugueses lançados de Macau, que os padres admitidos na China”.

Beijing (Pequim) tinha mudado de vice-rei de Cantão, a província que tinha poder administrativo sobre Macau. O novo mandarim acusava os portugueses de estarem a usurpar a justiça imperial, por levantarem tribunais ou decidirem causas. Além disso, estariam a “meterem estrangeiros em terra firme”, especialmente japoneses e cafres. Mandou o vice-rei que o Capitão de Macau e o seu Bispo, Belchior Carneiro, comparecessem perante si, em Chaoqin, no continente, onde residia. Os portugueses, “sem obedecerem em tudo, mas sem desobedecerem em tudo”, enviaram em nome do Capitão, o Ouvidor; em nome do Bispo, os religiosos Miguel Rugieri e Francisco Pacio.

Depois de um primeiro encontro, aprazível, em que a delegação ocidental apresenta sedas e cristais de presentes ao vice-rei (que as paga), faz-lhe chegar posteriormente a informação de que dispunha de “uma máquina de aço toda de rodas por dentro, que continuamente se moviam por si mesmas, e mostravam por fora todas as horas do dia e da noite, e ao som de uma campainha dizia o número de cada uma delas”.
E, perante a curiosidade ansiosa do vice-rei, dá-se o facto histórico: a 27 de Dezembro de 1582, Rugieri e Pacio fazem o que se pensa ser a introdução do primeiro relógio ocidental na China. Seria, segundo o que se sabe, um relógio de mediana grandeza, “obrado por excelente artífice”, e mandado da Europa ao padre português Rui Vicente, que o destinou à missão da China.

Apresentado o relógio, nas palavras de Francisco de Sousa, “foi o pasmo igual à novidade, e seria dobrado o gosto do vice-rei, se pudesse acomodar-se ao uso da China, que medindo o dia natural da meia-noite à meia-noite, como nós fazemos, não o reparte em vinte e quatro, senão em doze horas iguais: nem contam as horas por números, dizendo uma, duas e três, mas dão a cada uma delas o seu vocabulário misterioso, e alusivo segundo a sua crença”.

O relato no Do Oriente Conquistado, prossegue: “Dizem que o Céu foi criado no ponto da meia-noite: da uma hora para as duas a terra, das duas para as três o homem: e assim dão a cada uma destas horas, e às mais do dia, um nome significativo do que nelas aconteceu. Não repartem as horas em quartos, mas dividem todo o dia natural em cem partes, e cada parte destas tem cem minutos”.

Segundo o investigador chinês radicado em Portugal, Jing Guo Ping, o presente do relógio mecânico ao vice-rei de Cantão foi essencial para lhe ganhar as boas graças e conseguir a permanência dos portugueses em Macau. Este investigador sustenta ainda que foram os relógios que abriram a corte imperial, em Beijing, aos jesuítas.

Do uso que o Padroado fez do relógio

Desde que o relógio foi introduzido em Macau, primeiro, e na província chinesa adjacente, Guangdong, depois, esse mecanismo tradutor da superioridade técnica do Ocidente nunca mais deixou de fascinar o povo e, sobretudo, as classes dirigentes do Império do Meio — viam naquele instrumento mais um acto de magia do que a tradução de uma nova mentalidade, percursora da Revolução Industrial, que aliás iriam perder.

Desde a data histórica de 27 de Dezembro de 1582 que uma multidão de relógios de toda a espécie invadiu a China, tal era a procura e as portas que esses mecanismos abriam. Primeiramente pagos por um preço excessivo pelos mandarins, depois aceites apenas como presentes especiais — dos mais apreciados e dos que conseguiam contornar melhor os obstáculos da burocracia — os relógios começaram a ser para os próprios mandarins de Cantão arma de influência junto da corte, abrindo-lhes caminho para as boas graças a norte, até Beijing.

Para além de interesses comerciais, com Portugal e o seu posto avançado de Macau à frente, o Ocidente queria evangelizar o imenso território continental — os jesuítas, através do Padroado Português, agiam em monopólio, e usavam também os relógios e outros presentes mecânicos (autómatos musicais, por exemplo) para abrir as portas do Celeste Império.

Ganhar as graças do vice-rei de Cantão, era uma coisa. Mas chegar a Beijing, a milhares de quilómetros de distância, era outra. Os fundadores da Missão católica na China, os italianos Michele Ruggieri e Matteo Ricci, acompanhados de outros jesuítas, como os portugueses António de Almeida e Duarte de Sande, conseguiram atingir, depois de longa e complicada viagem, a corte imperial — estava-se a 24 de Janeiro de 1601. A embaixada religiosa levava consigo vários presentes. É claro que os relógios não podiam faltar. Os objectos não eram entregues directamente ao imperador, mas antes ao grupo de eunucos que verdadeiramente detinha o poder na Cidade Proibida.

Como as leis ditadas pelo Tribunal dos Ritos impediam ao monarca, um dos últimos da dinastia Ming, de admitir na sua presença quaisquer estrangeiros, ele ordenou que lhe mostrassem os objectos trazidos por Ricci, examinando-os longamente. Um relógio de grandes dimensões, outros relógios médios e um relógio com música atraíram-lhe particularmente a atenção. Os padres foram chamados à antecâmara imperial, para pôr os mecanismos em marcha e para ensinar os eunucos a maneira de dar-lhes corda. Construiu-se mesmo nos jardins do palácio, por ordem imperial, uma torre elevada para colocar nela o relógio maior.

Dias mais tarde, quando a corte pressionava para que os jesuítas se fossem embora (estavam ali na qualidade de embaixadores tributários de Portugal e não de missionários), foram os próprios eunucos que se opuseram a que tal ocorresse, temendo não ser capazes de dar convenientemente corda aos relógios ou, sobretudo, de concertá-los, se avariassem.

Segundo Jing Guo Ping, os missionários terão assim conseguido estabelecer-se na corte, de forma residente, mediante o estatuto de relojoeiros. É uma tese que carece ainda de provas documentais vindas dos arquivos imperiais chineses, mas é um facto que os relógios não só ajudaram Portugal a manter Macau como abriram as portas da corte em Beijing, ganhando as graças do imperador (conta-se que, pressionado, terá enviado à mãe um dos relógios, mas que terá mandado desligar o sistema musical, para que ela não ficasse demasiado fascinada com mecanismo tão precioso... e o devolvesse, como veio a acontecer).

Segundo relato do francês Du Halde (Descrição Geográfica, Histórica, Cronológica, Política do Império da Tartária Chinesa, de 1683), depois do primeiro espanto quanto a relógios, “os príncipes cristãos, cheios de zelo pela conversão de tão grande império, ajudaram aos missionários de uma maneira generosa e os gabinetes do imperador, em pouco tempo, se encontraram replenos de todas as espécies de relógios, a maior parte deles de uma invenção rara e de um trabalho extraordinário”.

Além dos que eram destinados directamente ao imperador, os relógios de melhor qualidade (e, obviamente, os mais caros) vinham directamente da Europa, nomeadamente da Alemanha ou da França, comprados pelos comerciantes ou pelos missionários aos negociantes portugueses em Macau.

Mas as somas pagas eram incomportáveis e os missionários passaram a fabricar eles próprios relógios e autómatos. Entre os construtores de tais admiráveis “sinos que tocam sozinhos”, o nome dado pelos chineses às misteriosas máquinas relojoeiras, contavam-se os padres portugueses Gabriel de Magalhães e Tomás Pereira.

Este último, nascido em 1645, em São Martinho do Vale, concelho de Barcelos, foi uma das figuras mais polifacetadas e curiosas entre os jesuítas portugueses a servirem no Oriente.

Em 1672, estando ele em Macau, o imperador Kangxi (já da dinastia Qing, grande admirador das técnicas ocidentais, apaixonado pelos relógios, chegando a fazer poemas sobre eles), mandou chamá-lo a Beijing, devido às referências que ouvira dele por parte de outro jesuíta, o belga Ferdinand Verbiest. Ficou por lá os 35 anos seguintes, até morrer, em 1708. Músico de formação, construía os seus próprios órgãos e, aplicando os conhecimentos musicais e mecânicos, construiu mesmo um enorme carrilhão, com relógio, que colocou numa das torres da igreja dos jesuítas, na capital do império.

Diz Du Halde, na obra já citada: “O padre Pereira, que tinha um talento especial para a música, fez colocar um grande e magnífico relógio no alto da igreja dos Jesuítas. Para isso mandou fundir uma quantidade de pequenos sinos seguindo as proporções da harmonia [...]. Cada sino tocava no momento apropriado, de acordo com as regras estabelecidas e ouviam-se distintamente as mais belas melodias do país antes do bater da hora, que era efectuado pelo grande relógio, com um som mais forte. Este espectáculo era tão novo para a corte como para o povo: grandes e pequenos acorriam. A igreja, apesar de tão espaçosa, não conseguia conter a multidão de pessoas que iam e vinham sem cessar”.


Um dos relógios de Tomás Pereira (gravura de du Halde)

Autómatos que conquistaram mandarins

A clara ausência do domínio e da compreensão das leis da mecânica por parte dos chineses explica — segundo Gerhard Doderer, professor da Universidade Nova de Lisboa — “a grande estupefacção que engenhos europeus como relógios, caixas de música, órgãos e carrilhões provocaram entre eles” nos séculos XVI, XVII ou XVIII. A superioridade científica dos ocidentais — exclusivamente representados na corte, em Beijing, por padres (e até determinada altura, apenas por jesuítas) — levou à decisão imperial de lhes conceder a direcção do chamado Tribunal das Matemáticas, até então sob direcção de quadros islamizados. Este departamento, crucial na administração do poder, interface entre os deuses no céu e o Imperador-deus, destinava-se a fazer os calendários, a prever os eclipses, a fabricar e manusear os instrumentos científicos necessários a essas missões.

Matteo Ricci, em carta para Roma, em 1605, dizia: “Estes globos, relógios, esferas, astrolábios, e outros, que fiz e cujo uso ensino, deram-me a reputação de ser o maior matemático do mundo. Não tenho um único livro de astrologia, mas apenas com a ajuda de algumas efemérides e almanaques portugueses, prevejo por vezes eclipses mais acuradamente” que os 200 funcionários chineses e árabes empregues pelo imperador para a feitura do calendário.


Representação de Matteo Ricci mostrando um relógio, na corte, em Beijing

Os padres, aos olhos dos mandarins chineses, tinham muito menos uma função religiosa ou de proselitismo (quando os jesuítas seguiam esses caminhos eram expulsos ou tinham outros problemas) e muito mais uma função de especialistas em micro mecânica, relojoaria, música, pintura — obtendo eles próprios, através dessas profissões, o grau de mandarim.

Esse Tribunal das Matemáticas não era mais do que um Observatório Astronómico, que aliás ainda hoje existe em Beijing, embora os instrumentos que lá estão sejam réplicas (os genuínos, do tempo dos jesuítas, foram pilhados por assaltos sucessivos de revoltas internas ou invasões estrangeiras).


O Observatório Astronómico de Beijing, ao tempo dos Padres Mandarins e na actualidade


Já referimos anteriormente o nome do padre português Gabriel de Magalhães. Por volta de 1654, ele e os seus colegas Adam Schall (alemão) e Luigi Buglio (italiano) estavam na direcção do Tribunal das Matemáticas.

Sabe-se que Gabriel de Magalhães produziu em Beijing pelo menos dois importantes relógios destinados à corte imperial. O primeiro, destinado ao imperador Shuanzi, o iniciador da nova dinastia manchu (Qing), datava de 1656-57. Pouco se sabe dele, excepto que custara um preço elevadíssimo e que os materiais necessários à sua manufactura tinham sido adquiridos pelo próprio Magalhães em Macau. O seu rasto perdeu-se no conturbado período que sucedeu à morte de Shuanzi, em 1661. Do segundo, produzido para o imperador Kangxi, em 1667, após um período de perseguições religiosas aos cristãos chineses, conhecem-se mais pormenores. A sua produção teve lugar numa oficina contígua à residência dos jesuítas em Beijing, e foi efectuada por artífices locais, sob supervisão de Magalhães, que também foi o autor dos planos de todo o mecanismo. O relógio estava colocado aproximadamente a meio de uma complexa estrutura de madeira em forma de torre, adornada de balaustradas, frisos, janelas, colunas e gradeamentos. A torre estava, também, guarnecida por duas figuras de homens que caminhavam, rodopiavam, mexiam as bocas e os pés, enquanto um deles apresentava uma bolsa com pedras preciosas. Sobre esta cúpula superior, movimentavam-se mais figuras, que agitavam bandeiras e espadas, enquanto num castelo, sob a cúpula, circulavam, também, pequenas figuras de guerreiros. Todos estes mecanismos se articulavam com o movimento do relógio, que também produzia música, acompanhando o toque das horas. Este relógio ficou célebre na época e agradou tanto a Kangxi que este ordenou a sua colocação no seu quarto de dormir. Desta e doutras peças importadas ou feitas pelos jesuítas perdeu-se o rasto, mercê das revoltas internas e invasões externas que já referimos.
O jesuíta francês Joseph Marie Amiot, nas suas célebres Lettres Édifiantes et Curieuses..., faz referência à sua chegada a Beijing, num domingo, 22 de Agosto de 1751, juntamente com mais dois jesuítas portugueses.

Por coincidência, estava-se no meio de uma festa importante — o sexagésimo aniversário da mãe do imperador. Depois de se prostrarem completamente no chão por três vezes, como exigido pelo protocolo imperial, apresentaram um presente à aniversariante que, mais uma vez fez abrir a boca de espanto a toda a corte de eunucos e mandarins e agradou especialmente ao imperador e à mãe.

Tratava-se de um autómato, um teatro em hemiciclo, com três cenas de cada lado e, no fundo, um boneco vestido à chinesa, ostentando nas mãos uma inscrição em chinês e onde se desejava ao imperador uma vida longa e afortunada. O todo movia-se através de rodas dentadas, que por sua vez faziam funcionar um relógio. Quando estava prestes a soar a hora, o boneco com a inscrição caminhava até à boca de cena e, com uma vénia, mostrava a sua mensagem. A peça passou a figurar num lugar de honra entre as “curiosidades” expostas na Cidade Proibida. Também dela se perdeu o rasto.

Falaremos mais tarde, neste levantamento de factos para uma história da relojoaria portuguesa, da figura fascinante de um “estrangeirado”, João Jacinto de Magalhâes. Mas não podemos deixar de referir que, estando ele a viver em Londres, escrevia em 1782 ao governante português Martinho de Melo e Castro, sobre os instrumentos científicos que lhe tinham sido encomendados e destinados ao bispo de Beijing (continuava a preocupação portuguesa e da instituição Igreja de abrir as portas do Império do Meio através de uma superioridade técnica e científica evidente).

O mesmo João Jacinto de Magalhães tinha escrito em 1768 ao seu compatriota Ribeiro Sanches (na altura a servir como médico na corte russa, em São Petersburgo) dando-lhe conta de que fora ver umas “máquinas prodigiosas e preciosas” que, de Inglaterra, iam ser remetidas aos imperadores da China e do Mogol (Índia), constituídas por figuras de animais, que eram movimentadas por um sistema de relojoaria.


Portugal, a China e os Relógios

O relógio patente nesta exposição é um exemplar do século XVIII, possivelmente de fabrico nacional, provavelmente anterior ao Terramoto, proveniente do Convento de Jesus, em Lisboa, e intervencionado no final do século XIX.

Com a extinção das ordens religiosas, em 1834, o espólio dos vários conventos, incluindo relógios, passa para terceiras mãos, sejam elas o Estado ou os particulares. O Convento de Jesus passou a albergar a Academia das Ciências, local onde ainda hoje a instituição se encontra, e o relógio saiu de lá em 1883. Foi parar ao Arco Triunfal da Rua Augusta, que era finalmente construído, mais de um século após o terramoto de 1755.

O relógio do Convento de Jesus é um exemplar da chamada relojoaria grossa ou férrea e as suas peças estão arrumadas numa gaiola cavilhada, característica da técnica dos séculos XVII e XVIII. Como relata a imprensa da época, o relógio “não estava preparado para indicar as horas para o lado da rua”. Ou seja, era, como muitos exemplares do seu tempo, para “bater” e não para “mostrar” o tempo, não tinha mostrador.

Assinalava sonoramente as horas e os quartos através de sinos que estavam a ele ligados. Quem o adaptou para ter mostrador e ponteiros e lhe deu um novo escape (substituindo o de folliot por um de âncora) foi Augusto Justiniano de Araújo, o fundador da Escola de Relojoaria da Casa Pia de Lisboa, ainda hoje a única que se dedica ao ensino da relojoaria em Portugal. O relógio acaba de ser restaurado, numa acção de mecenato que incluiu também a recuperação do relógio que se encontra actualmente no Arco da Rua Augusta e que o foi substituir nos anos 40 do século passado.


Escolhemos este exemplar de relojoaria grossa para ilustrar o tipo de relógios que os padres jesuítas fabricavam no século XVII na China. Foram os portugueses que introduziram a relojoaria mecânica, primeiro na Índia, depois na China, no Vietname, na Coreia e no Japão, quase sempre pela mão pioneira dos Jesuítas.
Quanto à China, essa entrada do relógio terá ocorrido em 1582, através de Macau, e como forma de impressionar o vice-rei de Cantão. Segundo relatos coevos de Francisco de Sousa, perante tão estranho e fascinante objecto, “foi o pasmo igual à novidade, e seria dobrado o gosto do vice-rei, se pudesse acomodar-se ao uso da China, que medindo o dia natural da meia-noite à meia-noite, como nós fazemos, não o reparte em vinte e quatro, senão em doze horas iguais: nem contam as horas por números, dizendo uma, duas e três, mas dão a cada uma delas o seu vocabulário misterioso, e alusivo segundo a sua crença”.

A primeira embaixada jesuíta a Beijing, em 1601, dirigida por Michele Ruggieri e Matteo Ricci, inclui relógios entre os presentes. Como as leis ditadas pelo Tribunal dos Ritos impediam ao monarca, um dos últimos da dinastia Ming, de admitir na sua presença quaisquer estrangeiros, ele ordenou que lhe mostrassem os objectos trazidos por Ricci, examinando-os longamente. Um relógio de grandes dimensões, outros relógios médios e um relógio com música atraíram-lhe particularmente a atenção. Os padres foram chamados à antecâmara imperial, para pôr os mecanismos em marcha e para ensinar os eunucos a maneira de dar-lhes corda. Construiu-se mesmo nos jardins do palácio, por ordem imperial, uma torre elevada para colocar nela o relógio maior.

Dias mais tarde, quando a corte pressionava para que os jesuítas se fossem embora (estavam ali na qualidade de embaixadores tributários de Portugal e não de missionários), foram os próprios eunucos que se opuseram a que tal ocorresse, temendo não ser capazes de dar convenientemente corda aos relógios ou, sobretudo, de concertá-los, se avariassem. Na visão de alguns historiadores chineses, os missionários terão assim conseguido estabelecer-se na corte, de forma residente, mediante o estatuto de relojoeiros, ganhando as graças do imperador (conta-se que, pressionado, este terá enviado à mãe um dos relógios, mas que terá mandado desligar o sistema musical, para que ela não ficasse demasiado fascinada com mecanismo tão precioso... e o devolvesse, desiludida, como veio a acontecer).

Segundo relato do francês Du Halde (Descrição Geográfica, Histórica, Cronológica, Política do Império da Tartária Chinesa, de 1683), depois do primeiro espanto quanto a relógios, “os príncipes cristãos, cheios de zelo pela conversão de tão grande império, ajudaram aos missionários de uma maneira generosa e os gabinetes do imperador, em pouco tempo, se encontraram replenos de todas as espécies de relógios, a maior parte deles de uma invenção rara e de um trabalho extraordinário”.

Além dos que eram destinados directamente ao imperador, os relógios de melhor qualidade (e, obviamente, os mais caros) vinham directamente da Europa, nomeadamente da Alemanha ou da França, comprados pelos comerciantes ou pelos missionários aos negociantes portugueses em Macau, destinados a “abrir portas” entre eunucos e mandarinato.

Mas as somas pagas eram incomportáveis e os missionários passaram a fabricar eles próprios relógios e autómatos. Entre os construtores de tais admiráveis “sinos que tocam sozinhos”, o nome dado pelos chineses às misteriosas máquinas relojoeiras, contavam-se os padres portugueses Gabriel de Magalhães e Tomás Pereira.

Este último, músico de formação, construía os seus próprios órgãos e, aplicando os conhecimentos musicais e mecânicos, construiu mesmo um enorme carrilhão, com relógio, que colocou numa das torres da igreja dos jesuítas, na capital do império. É esse relógio com carrilhão que aparece na célebre gravura incluída na Mursurgia Universalis, de Atanásio Kircher, de 1650. O mecanismo de relojoaria accionava um tambor com espigões, semelhante aos das caixas de música, que por sua vez accionavam arame sligados a sinos, assinalando todas as horas com melodias tradicionais chinesas. Na figura, onde se assinala com “x” está o escape do relógio, do tipo folliot.

Quanto a Gabriel de Magalhães (Pedrógão Grande, 1609 – Beijing 1677), sabe-se que produziu pelo menos dois importantes relógios destinados à corte imperial. O primeiro, destinado ao imperador Shuanzi, o iniciador da nova dinastia manchu (Qing), datava de 1656-57. Pouco se sabe dele, excepto que custara um preço elevadíssimo e que os materiais necessários à sua manufactura tinham sido adquiridos pelo próprio Magalhães em Macau. O seu rasto perdeu-se no conturbado período que sucedeu à morte de Shuanzi, em 1661. Do segundo, produzido para o imperador Kangxi, em 1667, após um período de perseguições religiosas aos cristãos chineses, conhecem-se mais pormenores. A sua produção teve lugar numa oficina contígua à residência dos jesuítas em Beijing, e foi efectuada por artífices locais, sob supervisão de Magalhães, que também foi o autor dos planos de todo o mecanismo. Além das horas, dava música e fazia accionar autómatos. Este relógio ficou célebre na época e agradou tanto a Kangxi que este ordenou a sua colocação no seu quarto de dormir (e até escreveu um poema dedicado ao Relógio, essa máquina que “roda sem descanso e dá horas sempre certas”). Desta e doutras peças importadas ou feitas pelos jesuítas perdeu-se o rasto, mercê das revoltas internas e invasões.


Diálogos e Expectativas, 22 e 26 Março, 18 Abril, 8 e 24 Maio.

Horário: 18.00 às 20.00. Entrada livre, sujeita a inscrição. Piso 4. Organização: Fundação Oriente e Universidade Autónoma de Lisboa. Atribuição de ETCS (European Credit Transfer System) aos estudantes que frequentarem pelo menos quatro sessões.

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